"O tempo adere ao pensamento do historiador, assim como a terra se prende a pá do jardineiro"
Fernand Braudel

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Eles eram transportados de navio, em uma longa viagem. Retirados de sua terra natal e levados para um novo continente chamado América. Esta viagem que não era de férias e que eles não haviam escolhido, era sem volta, não havia mais como voltar para sua terra. E lá na terra de onde foram retirados, havia ficados seus amigos, sua família e sua liberdade.
Agora já não era homem, era mercadoria. Seu trabalho já não era finte de seu salário, agora seu trabalho era ser a ferramenta de outro homem, e esse homem (branco) é que enriqueceria com seu trabalho, com seu esforço, com sua dor.

domingo, 20 de março de 2011

A maldição Branca - Eduardo Galeano

No dia 1º de janeiro de 2004, a liberdade cumpriu dois séculos de vida no mundo. Ninguém reparou, ou quase ninguém. Poucos dias depois, o país do aniversário, o Haiti, passou a ocupar algum espaço nos meios de comunicação; não pelo aniversário da liberdade universal, mas sim porque ali se desencadeou um banho de sangue que acabou despachando o presidente Aristide.
O Haití foi o primeiro país a abolir a escravatura. No entanto as enciclopédias mais difundidas e quase todos os textos escolares atribuem à Inglaterra essa honra histórica. É verdade que um belo dia o império que havia sido campeão mundial do tráfico negreiro mudou de opinião; mas a abolição britânica ocurreu em 1807, três anos depois da revolução haitiana, e foi tão pouco convincente que em 1832 a Inglaterra teve que voltar a proibir a escravatura.
Nada de novo no aviltamento do Haití. Há séculos que é desprezado e castigado. Thomas Jefferson, prócer da liberdade e proprietário de escravos, advertia que do Haití vinha um mau exemplo; e dizia que era preciso "confinar a peste a essa ilha". O país ouviu-o. Os Estados Unidos demoraram sessenta anos a outorgar reconhecimento diplomático à mais livre das nações. Entretanto, no Brasil, chamava-se haitianismo à desordem e à violência. Os donos dos braços negros salvaram-se do haitianismo até 1888. Nesse ano, o Brasil aboliu a escravatura. Foi o último país do mundo.
O Haití voltou a ser um país invisível, até à próxima carnificina.
Enquanto esteve nas pantalhas e nas páginas, no princípio deste ano, os media transmitiram confusão e violência e confirmaram que os haitianos nasceram para fazer bem o mal e para fazer mal o bem. Desde a revolução para cá, o Haití apenas foi capaz de oferecer tragédias. Era uma colónia próspera e feliz e agora é a nação mais pobre do hemisfério ocidental. As revoluções, concluíram alguns especialistas, conduzem ao abismo. E alguns disseram, e outros sugeriram, que a tendência haitiana ao fratricídio provém da herança selvagem que vem de África. O mandato ancestral. A maldição negra, que empurra para o crime e o caos.
Da maldição branca não se falou.
A revolução francesa aboliu a escravidão, mas Napoleão ressuscitou-a:
- Qual foi o regime mais próspero para as colónias?
- O anterior
- Pois então restabeleça-se
E, para reimplantar a escravidão no Haití, enviou mais de cinquenta navios cheios de soldados. Os negros amotinados venceram a França e conquistaram a independência nacional e a libertação dos escravos. Em 1804, herdaram uma terra arrasada pelas devastadoras plantações de cana de açucar e um país queimado pela guerra feroz. E herdaram "a dívida francesa". A França cobrou caro a humilhação infligida a Napoleão Bonaparte. Acabado de nascer, o Haití teve que comprometer-se a pagar uma indemnização gigantesca, pelo mal que fez ao libertar-se. Essa expiação do pecado da liberdade custou-lhe 150 milhões de francos ouro. O novo país nasceu estrangulado por essa corda atada ao pescoço: uma fortuna que actualmente equivaleria a 21.700 milhões de dólares ou a 44 orçamentos totais do Haití dos nossos dias. Muito mais de um século levou a pagar a dívida, que os juros da usura iam multiplicando. Em 1938 chegou, finalmente, a redenção final. Nessa altura já o Haití pertencia aos bancos dos Estados Unidos.
Em troca dessa maquia a França reconheceu oficialmente a nova nação. Nenhum outro país a reconheceu. O Haití nascera condenado à solidão.
Nem sequer Simón Bolivar a reconheceu, ainda que tudo lhe devesse. Barcos, armas e soldados foram-lhe oferecidos pelo Haití em 1816, quando Bolívar chegou à ilha, derrotado, e pediu apoio e ajuda. O Haití deu-lhe tudo, com a única condição de que libertasse os escravos, uma ideia que até então não lhe tinha ocorrido.
Depois, o senhor triunfou na sua guerra de independência e expressou a sua gratidão enviando a Port-au-Price uma espada de presente. De reconhecimento, nem falar.
Na realidade as colónias espanholas que tinham passado a ser países independentes continuavam a ter escravos mesmo que algumas tivessem, aliás, leis que o proibiam. Bolivar ditou a sua em 1821, mas a realidade não se deu por satisfeita, Trinta anos depois, em 1851, a Colômbia aboliu a escravatura; e a Venezuela em 1854.
Em 1915, os marines desembarcaram no Haití. Ficaram dezanove anos. A primeira coisa que fizeram foi ocupar a alfândega e a repartição de cobrança de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até este se resignar a assinar a liquidação do Banco da Nação, que se converteu em sucursal do City Bank de Nova Iorque. O presidente e todos os outros negros estavam proibidos de entrar nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravatura, mas impuseram o trabalho forçado nas obras públicas. E mataram muito. Não foi fácil apagar os focos de resistência. O chefe guerrilheiro, Charlemagne Péralte, cruxificado contra uma porta, foi exibido, como aviso, na praça pública.
A missão civilizadora terminou em 1934. Os ocupantes retiraram-se deixando em seu lugar uma Guarda Nacional, fabricada por eles, para exterminar qualquer possível assomo de democracia. Fizeram o mesmo na Nicarágua e na Repúlica Dominicana. Algum tempo depois Duvalier foi haitiano de Somoza e Trujillo.
E assim, de ditadura em ditadura, de promessa em traição, foram-se somando as desventuras e os anos.
Aristide, o padre rebelde, chegou à prsidência em 1991. Durou poucos meses. O governo dos Estados Unidos ajudou a derrubá-lo, levou-o, submeteu-o a tratamento e uma vez reciclado devolveu-o, nos braços dos marines, à presidência. E de novo ajudou a derrubá-lo, neste ano de 2004, e de novo houve mortandade. E de novo voltaram os marines, que regressam sempre, como a gripe.
Porém os peritos internacionais são muito mais devastadores que as tropas invasoras. País sumbetido às ordens do Banco Mundial e do Fundo Monetário, o Haití obedecia às suas ordens sem tugir. Pagaram-lhe negando-lhe o pão e o sal. Congelaram-lhe os créditos, apesar de ter desmantelado o Estado e ter liquidado todas as taxas aduaneiras e subsídios que protegiam a indústria nacional. Os agricultores de arroz, que eram a maioria converteram-se em mendigos ou balseros. Muitos foram e continuam a ir parar ao fundo do mar das Caraíbas, porém esses náufragos não são cubanos e raras vezes aparecem nos diários.
Agora o Haití importa todo o arroz dos Estados Unidos, de onde os peritos internacionais, que são gente bastante distraída, se esqueceram de proibir as taxas aduaneiras e os subsídios que protegem a produção nacional.
Na fronteira onde termina a República Dominicana e começa o Haití, há um grande cartaz que avisa: O mau passo.
Do outro lado está o inferno negro. Sangue e fome, miséria, peste.
Nesse inferno tão temido, todos são escultores. Os haitianos têm o costume de recolher latas e ferros velhos e com antiga mestria, recortando e martelando, as suas mãos criam as maravilhas que se oferecem nos mercados populares.
O Haití é um país atirado ao vasadouro, por eterno castigo da sua dignidade. Ali jaz como se fosse sucata. À espera das mãos da sua gente.
Eduardo Galeano

quinta-feira, 10 de março de 2011

Os ninguéns - Eduardo Galeano 



“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.”
Eduardo Galeano